Estava ansioso para assistir ao filme. Minha irmã já tinha falado do livro e mais alguma amiga também comentou algo sobre ele. Assim que ficou disponível na Netflix, assisti. Adorei a ideia, o roteiro, o desenvolvimento, a proposta, a atuação da protagonista. Nas redes sociais, porém, vi algumas pessoas dizendo que não entenderam nada: “Quem assistiu Bird Box e sentiu que faltou explicações? Tô tipo HAN”. Sim, estamos falando de Bird Box ou “Caixa de Pássaros”. Contudo, a questão central é: precisa mesmo de explicação?
O filme estreou no dia 21 de dezembro deste ano, 2018, na Netflix. O livro, de Josh Malerman, é de 2014, cuja tradução foi lançada em 2015 pela editora Intrínseca. No longa, Sandra Bullock é quem assume o papel de Malorie, uma mulher na casa dos 30 ou começo dos 40, aparentemente uma artista reclusa e não muito sociável. Ela passa um sermão duro em duas crianças. Ela é seca, dura, séria, nem um pouco maternal. Parece preocupada com o que vai acontecer, mas não deixa isso transparecer na voz e na forma como trata o Menino (Boy) e a Menina (Girl), nomes do casal de pequenos, de apenas quatro anos. Logo vemos que ela não é chamada de mãe, mas sim pelo nome próprio. “Malorie?” A menininha chama por ela em alguns momentos do longa. A falta do termo materno dá a entender que a relação entre ela e as crianças é fria e calculista. Pra quê nomes? Há alguma explicação para isso? Precisa de alguma explicação? Ela rema um barco, em um rio largo e o casal vai sentado à sua frente, todos com vendas nos olhos.
No livro, a coisa é um pouco diferente. Malorie é jovem, tem cerca de 25 anos e as crianças chamam ela de mamãe, apesar de ela chamar as crianças de Garoto e Menina, na tradução (errada a meu ver) da edição brasileira. Não sabemos ao certo a profissão da protagonista, mas sabemos que ela tem uma irmã, Shannon. Acompanhamos a descoberta da gravidez, resultado de uma única noite com um homem sem muita importância; a confirmação da gestação e, ao mesmo tempo, as notícias e reações de algumas pessoas a um estranho evento que começou na Rússia. As pessoas estavam tapando as janelas das casas com papelão e cobertores. Não era recomendado olhar para fora. “Não abra os olhos”. Criaturas ou seres malignos ou alienígenas estavam enlouquecendo as pessoas que ousavam enxergar. A loucura levava a atos de violência e ao suicídio. Sem saber o que está acontecendo e o que são essas coisas, as pessoas precisam se adaptar para sobreviver.
O enredo, tanto do livro quanto do filme, é o mesmo. Duas narrativas caminham juntas: o momento presente, no rio com Malorie e as duas crianças vendadas remando para algum lugar; e o passado, a adaptação a um mundo incerto, enquanto Malorie ainda está grávida e enfrenta o começo daquela “epidemia” (se é que era um vírus ou uma doença) e procura sobreviver. Ela vive em uma casa, que não é sua, com outras pessoas. Nenhum deles sabe ao certo o que há do lado de fora.
Esse jogo de cenas, do presente e do passado, aumenta o suspense. Já sabemos como será o ‘futuro do passado’ que nos é apresentado, mas queremos saber mais o que levou Malorie àquela situação. O que a motivou a entrar, vendada e com duas crianças, em um barco e seguir rio abaixo? Onde estão os outros personagens que conviveram com ela na casa? O que ela está procurando? No filme acompanhamos essas cenas de longe, pelos olhos da diretora, Susanne Bier; já no livro, acompanhamos um pouco mais de perto, a partir de uma narrativa em terceira pessoa, mas que só sabe o que acontece no mundo a partir do que Malorie também sabe, sente e, principalmente, escuta. Essa primeira diferença faz a imersão do livro ser mais profunda que no filme e acredito que seja aí que mora o problema.
Estamos acostumados a ter explicação para tudo. Hoje, todos têm uma opinião na ponta da língua para política, artes, economia e todo e qualquer assunto de humanidades – engraçado que ninguém se arrisca a contestar um engenheiro, mas com um historiador a coisa é diferente, não é mesmo? Além disso, algo que não está explícito, explicado com detalhes e fácil de ser entendido, parece perder valor. O problema de buscar sempre uma explicação é que não entendemos o que nos é ofertado. Na verdade pouco importa o que são as criaturas em Caixa de Pássaros. A história não é sobre elas e, de preferência, espero que não seja, caso haja uma continuação. Pra quê precisamos saber se são alienígenas, seres maléficos, um vírus, Deus irritadinho, Diabo se divertindo ou o autor que não sabe explicar? A história não é sobre isso!
Como uma “história de terror psicológico em um mundo pós-apocalíptico”, como é definido na apresentação do livro, o que importa é como os personagens pensam, sentem, se adaptam, se divertem, lutam, pensam, fazem estratégias… sobre como eles querem sobreviver e o quanto o cenário atual coloca dificuldades neste caminho. Você já tentou andar à noite pela casa sem acender nenhuma luz ou durante o dia de olhos fechados? Tudo é escuro ou borrões luminosos e, claro, seu dedinho bate na quina do sofá. Imagine essa situação com algo te rondando. Algo que você não sabe o que é e, se você quiser descobrir, vai morrer? Você escolhe se render à curiosidade ou se manter vivo? Malorie escolheu viver e, mais que isso, escolhe proteger o casal de crianças. É isso que importa. As criaturas são só coadjuvantes, mais nada.
O filme, em si, tem uma fotografia estonteante. O rio e toda sua imensidão rende cenas lindas. A casa, toda protegida com cobertores, nos passa aquela sensação de confinamento. No livro não é só um pouco diferente: a narrativa sobre o rio é tensa, não sabemos o que pode ter ali observando, espreitando ou até atacando a protagonista e as duas crianças. Dentro da casa, o medo do exterior vêm à tona e um espírito comunal domina o convívio do grupo recluso. Apesar de o filme criar um cenário muito próximo ao do livro, há algumas diferenças interessantes de serem observadas.
Caixa de pássaros?
A primeira diferença marcante está relacionada ao nome da obra. No filme e no livro há uma caixa de papelão com pássaros, daí “Caixa de Pássaros”? Não exatamente. No longa, a caixa é carregada pela Menina ao longo do Rio. Sabemos que os pássaros se agitam na presença das criaturas, portanto, ela é um alarme importante e está presente em toda a história. Já no livro, os pássaros também servem de alarme, mas para indicar a aproximação de pessoas também e não apenas das ameaças desconhecidas que estão do lado de fora da casa. A caixa sequer é levada na viagem pelo rio, como foi feito no filme. Sendo assim, ela tem um papel totalmente secundário, ou melhor, um papel metafórico: assim como as aves, os humanos estão trancados em suas próprias caixas, protegidos do mundo externo por cobertores pregados nas janelas e por vendas que limitam a visão. Neste ponto, a “Caixa de pássaros” é, portanto, mais explícita no filme que no livro – seria porque as pessoas precisam sempre de explicação para tudo que veem? Talvez. Foi uma opção do roteiro, mais para justificar o nome do filme que para ser fiel à história de Malerman. Pra mim isso foi um ponto fraco do longa, afinal, o nome do filme leva as pessoas à procurarem uma razão naquilo que não precisa.
Em que mundo você vai colocar seus filhos?
Há uma outra comparação que rende mais um ponto ao livro: em que mundo as crianças nasceram, cresceram e vão se desenvolver. Logo no primeiro capítulo da obra, o autor já nos apresenta essa preocupação da protagonista:
Malorie sabe que quatro anos podem facilmente virar oito. Oito se tornarão doze em um instante. E então as crianças serão adultas. Adultos que nunca viram o céu. Nunca olharam por uma janela. O que doze anos vivendo como gado fariam com suas cabeças? Será que há um momento em que as nuvens do céu passam a existir apenas em suas mentes e o único lugar onde os filhos se sentirão à vontade será atrás do tecido negro das vendas? (p. 9)
Esse temor não aparece no filme, deixando a reflexão para o espectador. Porém, é uma questão muito interessante para ficar de fora do roteiro. Mas aí podemos voltar à questão: pra quê explicar ou explicitar? Aqui a resposta é mais clara: porque este é (ou pode ser, a depender da interpretação do leitor) o foco, o ponto principal de toda a história: a luta de Malorie pela segurança e pelo futuro das crianças.
Sabemos que uma delas (ou as duas) deve ser filho(a) dela. Sendo assim, o instinto de sobrevivência e, acima disso, o instinto maternal de Malorie é que saltam aos olhos em cada decisão da protagonista. No rio, no momento presente, ela se preocupa com a segurança das crianças e se orgulha da forma como as treinou para ter uma audição extremamente apurada; na casa, onde ela convive(u) com outras pessoas, a preocupação é se manter viva para ter o(s) bebê(s).
Sendo assim, tudo gira em torno da relação de Malorie com a maternidade em um mundo coberto por vendas e cobertores, em uma Caixa de Pássaros. Isso fica mais evidente em um detalhe já mencionado: no livro as crianças chamam a protagonista de “mamãe”; no longa, de Malorie. O filme apaga a questão da maternidade, chegando até a mostrar, em algumas cenas, que a personagem principal não está tão confortável com a ideia de ser mãe. Esse desconforto, contudo, não está relacionado ao cenário atual e ameaçador, mas sim à vida solitária e aparentemente avessa à vida em sociedade de Malorie. Já no livro, a personagem não tem dúvidas sobre sua maternidade, inclusive quando a mãe pergunta se ela irá interromper a gestação frente ao caos que começara a se instalar no mundo.
No filme, Malorie não quer que as crianças tenham falsas esperanças relacionadas a um mundo inacessível; no livro, ela busca e se prepara para esse mundo. Há, portanto, uma mudança importante de foco que faz com que o roteiro do longa seja menos rico que a obra original.
Representatividade
Agora é hora de dar crédito ao filme: apesar de o longa perder esse foco principal, ele ganha muito em representatividade. Este é um tema que está na crista da onda e cada vez mais forte. Com a ascensão de governos de extrema direita e seus representantes homofóbicos, racistas, misóginos e xenófobos, a Netflix parece estar levantando cada vez mais forte a bandeira das minorias – vide as animações She-ra e Superdrags, por exemplo.
No livro, as aparências parecem importar pouco e dão lugar às sensações e percepções. Contudo, Tom é branco, loiro e de barba ruiva. Já no filme, ele é interpretado Trevante Rhodes, que ganhou notoriedade com o filme “Moonlight: Sob a luz do Luar”. O filme, de 2017, dirigido por Barry Jenkins, conta a história de uma criança negra e gay que cresce em um mundo de crimes e drogas. Representatividade lá, representatividade aqui e não para por aí.
Além de Tom, outros personagens ganharam rostos e personalidades mais “atuais” e se distanciaram um pouco da história de Malerman. George, o dono da casa onde Malorie se abriga, no livro, é substituído por Charlie. Interpretado por BD Wong, ele é gay e tem uma casa toda luxuosa, toda mobiliada com seu Pink Money, claro.
No momento em que o longa passa a focar na casa, Charlie estava recebendo a visita de Douglas (John Malkovich), um advogado misógino e homofóbico que queria impedir que o vizinho gay e seu marido fizessem paredes de vidro na casa. Ele não queria ver a aberração que seria a convivência de um casal homoafetivo a poucos metros de sua porta, assim como vários membros da família tradicional brasileira não querem que os filhos vejam uma animação que fala de homossexuais, mas não veem problemas em uma sobre estupro, com cenas de sexo quase explícito e etc. Fora essa questão (e esse pequeno desabafo), Douglas é o cético da casa: ele é sempre contrário às decisões do grupo e gera conflitos desnecessários com Malorie e outros moradores por conta de seus preconceitos enraizados – conflitos que são sempre repreendidos de forma dura por Malorie com frases que todo mundo gostaria de dizer para aquelas pessoas irritantes e perversas que votaram em Bolsonaro. No livro, Douglas é Don, também cético e também contrário às decisões do grupo, mas sem a carga forte de preconceito do personagem de Malkovich.
Outra mudança de papeis está na personagem Olympia. O nome é o mesmo, sua característica inocente e assustada também, porém, no filme, ela é interpretada por Danielle Macdonald, uma mulher loira e gorda.
Saldo: negros, homossexuais, gordas, bolsominions. Todos juntos, trancados em uma casa, sem poder olhar pela janela e tendo que conviver com suas personalidades marcantes. Portanto, se o foco do livro é a maternidade, no filme ele é composto, em partes, por preconceitos e nossa sociedade atual.
Com tudo isso exposto, pra quê explicar o que são as criaturas do lado de fora, sendo que temos que lidar com outras problemas por vezes mais desafiadores como a criar filhos e por vezes mais complexos como os preconceitos de uma supremacia branca e rica? Não procure explicações para as criaturas, foque no que elas causam e obrigam as pessoas a fazer: conviver em um espírito comunal e/ou lutar pela sobrevivência dos filhos. Isso é Caixa de Pássaros.