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Medo Clássico e o que nossa memória coletiva sabe sobre “Drácula” e “Frankstein”

Passei as duas últimas semanas de fevereiro lendo “Drácula” e “Frankstein”, nas edições da editora DarkSide. Primeiro a história do vampiro, depois a do “experimento diabólico” de Victor. A ordem, na verdade, não foi a mais adequada, porém, as duas experiências resultaram em algumas reflexões que gostaria de compartilhar aqui.

É, no mínimo, curioso ler pela primeira vez dois clássicos do horror depois dos 30 anos. Confesso que nunca tive muito interesse por ler nenhuma das obras até pouco tempo atrás. Porém, alguns meses depois de despertar essa curiosidade ganhei a obra de Mary Shelley de aniversário e a de Bram Stoker de Natal, os dois da minha irmã. Como já estava um tanto quanto saturado de obras baseadas em fatos reais e, portanto, tão duras quanto a realidade, achei interessante mergulhar em algo diferente.

Nada condizente com a memória coletiva

A primeira particularidade dessas leituras tardias foi descobrir quais são, de fato, as histórias originais. Sou daqueles que ou lê o livro ou assiste ao filme. Geralmente não gosto de adaptações e não me sinto muito interessado em recorrer à outra mídia para ficar comparando versões. Raras foram as exceções: quando ainda era muito novo, assisti e li “Código Da Vinci”, de Dan Brown; o filme “Histórias Cruzadas” (The Help), de Kathryn Stockett, me fez recorrer à leitura do livro; e, por fim, fiquei curioso para ler “Caixa de Pássaros”, de Josh Malerman, depois de assistir ao filme produzido pela Netflix. O livro de Dan Brown era praticamente um roteiro de cinema. Já os de Stockett e Malerman tinham diferenças, o primeiro na estrutura e o segundo no enredo.

Com “Drácula” e “Frankstein” a coisa foi bem diferente. Há incontáveis adaptações das duas obras para a maioria das mídias possíveis. A edição comemorativa da obra de Stoker, lançada em 2018 pela DarkSide, traz algumas imagens muito bacanas das adaptações para o cinema, no final do livro. Mesmo com essas fotos, resolvi pesquisar algumas artes de Drácula no Pinterest – eis que entrei no buraco negro que é essa rede social e demorei um século para sair. Além das artes, encontrei as várias capas que a obra já teve e suas edições e adaptações em quadrinhos. Não fiz o mesmo exercício com “Frankstein”, mas o resultado, obviamente, é o mesmo.

A questão aqui é que a história desses dois ícones do horror mundial é muito diferente daquela que eu tinha na memória. Assisti, muitos anos atrás, as adaptações clássicas para o cinema. Porém, o fator tempo e as inúmeras adaptações e aparições desses personagens, em filmes próprios ou secundários, desfez totalmente a lembrança que eu tinha dessas histórias. Enquanto lia “Frankstein” me lembrei vagamente de algumas cenas do monstro olhando por uma janela e correndo por uma colina. Apesar disso, não consegui confiar na minha memória que sempre foi dominada por um castelo, um aparato científico gigantesco, um raio atraído por contudores e a famosa frase “It’s aliiiiiiive”.

Ok, depois de procurar por essa cena, percebi que ela veio da adaptação clássica. Porém, spoiler: ela não é assim no livro!

A mesma coisa aconteceu com “Drácula”. Minha memória era ainda mais vaga sobre essa história dada a quantidade de aparições que o dentuço fez no cinema. Quem nunca leu a obra de Stoker, vale a pena escrever como você acredita que a história é e depois revisitar suas impressões ao terminar o livro. A menos que você seja um aficcionado por histórias de terror e só ainda não teve tempo de ler a obra, as histórias que temos em nossa memória coletiva é totalmente difernte. Porém, esse ponto não é nada negativo: os dois personagens são muito famosos e é natural que cada roteirista e/ou diretor lance sua própria versão sobre os clássicos. Exemplo disso é “Troia”: o filme guarda pouca relação com o livro de Homero, claro.

As versões brasileiras em diferentes linguagens

Apesar de querer ler obras de terror e menos embasadas na realidade, fiquei um pouco resistente em começar a ler “Drácula”. Eu queria uma leitura mais tranquila, para fantasiar junto com o autor. Meu medo era que a linguagem fosse rebuscada e formal demais, dado que Stocker escreveu a obra quase no final do século XIX – medo não é a melhor definição, talvez preguiça explique melhor. Contudo, ler a edição da DarkSide foi uma surpresa.

Quem traduziu a história de Stocker para a DarkSide foi Marcia Heloisa. Ela também é responsável pela introdução , pelas notas e pelo posfácio da edição. Além disso, Heloisa é uma aficcionada por Drácula, fez da obra sua carreira acadêmica e deixa essa paixão muito clara nos textos acompanham o livro e na tradução.

Marcia, essa é pra você, caso um dia leia esse texto. 💜

No curso de Letras, na USP, tive um professor que comentou que “Tradução é uma impossibilidade teórica” e é fato. Cada língua tem suas particularidades e o peso que as palavras têm é muito difícil de ser transportado para um outro idioma. Sendo assim, toda tradução para o português, por exemplo, é uma “versão brasileira” da obra original. Há quem discorde dessa questão, mas basta pensa em como seria a tradução de Guimarães Rosa para chegarmos a um consenso.

Enfim, voltanto à Heloísa, a versão dela de Drácula ficou leve e muito fácil de ler. Não há o tom formal do século XIX na edição e isso tem prós e contras. O contra é que acredito que a gente perde a “aura” da obra, afinal, a linguagem faz parte do contexto. O pró é que o texto fica muito próximo de nossa língua, principalmente a oral. A tradutora usou uma série de gírias muito comuns em nosso cotidiano para traduzir alguns pontos chaves de Drácula. Num primeiro momento isso parece bem estranho e pode até tirar sua concentração do enredo, porém, se você relevar e/ou se acostumar com essa questão, a leitura flui muito bem. Essa fluidez, inclusive, se deve ao fato de a linguagem não ser de época. Assim, é possível entrar de cabeça na obra e ter um momento superagradável com dr. Seward, Mina e Jonathan Karker e até, embora mais difícil, com o dr. Van Hensing.

Caçador de demônios fodão

Falando em Van Helsing, este personagem vale um tópico à parte. Falando mais uma vez em “memória coletiva”, acredito que a maioria das pessoas se lembre desse filme:

Hugh Jackman, como Van Helsing, no filme homônimo, de 2004

Porém, no livro de Stoker, Van Hensing é tudo menos jovem, sarado e galã. Ele é tudo, literalmente: médico, doutor nisso, mestre naquilo… ou seja, domina várias áreas do conhecimento, inclusive, como matar vampiro. Porém, ele é um senhorzinho já e não fala muito bem inglês. Aliás, é muito chato ler as falas e os relatos desse personagem nas primeiras vezes. A tradutora explica essa questão e diz que preferiu manter os “erros” das falas do personagem para não quebrar a intenção original de Stoker (é respeito pela obra que fala!).

Um romance de diários, cartas e notícias

Outra questão muito interessante de “Drácula” é que a obra inteira é composta por diários, cartas e notícias de diversos personagens. Começamos a acompanhar o diário de Jonathan Harker, um advogado jovem que foi até a Transilvânia resolver algumas questões com Drácula referentes à compra de um imóvel na Inglaterra. Depois de alguns acontecimentos macabros (mas que não dão medo), a narrativa dele é suspensa e começamos a acompanhar os outros personagens.

Não vou dar mais detalhes e sugiro que, se você não quer spoilers, não leia a Introdução da Marcia Heloisa antes da obra.

O ponto aqui é que a estrutura de “Drácula” é muito envolvente justamente porque não é um romance tradicional, aqueles com um narrador em primeira ou terceira pessoa. As cartas, notícias e relatórios, embora tenham mantenham uma linearidade, permitem ao leitor o acesso a múltiplos ângulos, sentimentos e impressões referentes à história principal. Confesso que me peguei vários momentos procurando onde é que tal personagem voltaria a escrever em seu diário tamanha era a curiosidade que Stoker desperta ao fazer as várias suspensões nas narrativas.

Afinal é horror ou não?

Para finalizar minhas impressões, acho relevante dizer que nem “Drácula” e nem “Frankstein” me deram “medo”. Em alguns momentos de “Drácula” eu tive nojo (não vou dizer o porquê), mas medo, não. Fui, sim, surpreendido em vários pontos, principalmente em Frankstein, embora as duas obras sejam um tanto quanto previsíveis. Isso tudo provavelmente acontece por conta de nossa memória sobre as duas histórias: sabemos, bem ou mal, quem são Drácula e Frankstein. Esse conhecimento prévio, de certa forma, invalida algumas surpresas e o potencial medo que as duas obras despertaram quando foram lançadas. Cabe à leitura dos originais, portanto, colocar os pontos nos is e as vírgulas nos lugares corretos para que tenhamos um contato mais concreto com as obras.

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