Na infinidade que é o tempo, nossa existência nesse mundo é só uma fração de segundo. Estamos tão acostumados com tudo acontecendo de maneira rápida, dadas as novas tecnologias da informação e comunicação (TICs), mas nem tudo é assim. Fora da esfera tecnológica, o tempo parece se deslocar a passos de uma tartaruga cansada de carregar o peso do mundo nas costas. Essa é a visão que justifica uma comemoração expressa na frase “Antes tarde do que nunca”, referente à votação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a criminalização das manifestações de ódio contra a população LGBTI+.
Rolar a timeline do Facebook ou do Twitter, assistir ao noticiário e se informar sobre o que acontece aqui e acolá são formas de comprovar como a lentidão ainda guia os avanços sociais. “Pela primeira vez um Boeing 747 será pilotado por mulheres”; “Primeira transsexual obtém título de doutorado”; “STF aprova lei de homofobia”; “O STF está legislando sobre criminalização, o que é errado, e a lei da homofobia vai prejudicar os próprios homossexuais na hora de conseguir emprego”. A última frase é de autoria de um dos maiores homofóbicos que chegou ao poder executivo recentemente no Brasil.
Enquanto a representatividade de todas as minorias continua combativa e atuante, pedindo nada além de direitos e respeito, nossa sociedade insiste em dar passos para trás, rumo às mamadeiras de piroca e ao kit gay. Qualquer manifestação de ódio, contra qualquer ser vivo, deveria ser crime; acima disso, deveria ser desnecessária. A necessidade de colocar no papel que não é permitido discriminar porque alguém é diferente, só comprova que as leis ainda parecem expressar uma ordem que precisa ser coercitiva, dada a falta de empatia e colaboração em nossas vidas e rotinas.
Resistência? Presente!
Apesar de toda essa visão negativa, vale comemorar. A decisão vem, sim, “antes tarde do que nunca”, mas vem em um momento extremamente adequado. Nossa geração está acompanhando a ascensão dessa minoria colorida e empenhada na conquista do respeito. Lá do país que determina o que a indústria cultural produz, os Estados Unidos, acompanhamos há uma década grupos de drag queens mostrando sua arte e histórias de superação sob o comando de RuPaul. É inegável que o programa RuPaul’s Drag Race escancarou para o mundo uma arte até então (e ainda) marginalizada, que sobrevivia de gorjetas em boates. Essa revolução, também a passos de tartaruga, resiste aos ataques de uma ala conservadora lá na terra do show business. A minoria, contudo, reage: está cada vez mais comum um posicionamento político, de resistência e conscientização nos episódios do programa, principalmente nas falas de uma das maiores drags no cenário internacional, a própria RuPaul.
Para nosso contexto nacional, o voo também foi alçado. Tivemos cantores e cantoras da classe LGBTI+ no passado, mas como temos melhor percepção de nosso próprio momento, vale destacar quem está nos palcos brigando pela tão difícil igualdade. Gloria Groove, Pabllo Vittar, Lia Clark, Daniela Mercury, Ludmilla e Lia Clark, são nomes que, com maior ou menor visibilidade, estão assumindo espaços coletivos e dando voz às particularidades, desafios, sofrimentos e sentimentos de nossa minoria.
Neste mês de junho, por exemplo, Pabllo Vittar estava em Los Angeles, na Califórnia (Estados Unidos). Parece irrisório considerar essa informação como um marco, mas não é. A drag queen brasileira, que hoje tem mais seguidores nas redes sociais que a própria RuPaul, voou para a terra da Mamma Ru a partir de um discurso que traz à tona todas as questões envolvendo a comunidade LGBTI+. Na música “Indestrutível”, do álbum Vai Passar Mal (2017), ela diz:
O que me impede de sorrir
É tudo que eu já perdi
Eu fechei os olhos e pedi
Para quando abrir a dor não estar aqui, mas
Sei que não é fácil assim
Mas vou aprender no fim
Minhas mãos se unem para que
Tirem do meu peito o que há de ruim
E vou dizendo…
Perda, lágrimas, tristeza, dificuldade, negação, aprendizados, fé, peso, voz. Essa música é um registro da história de Pabllo e de seus Vitta Lovers, como é conhecido o fandom da cantora. História passada e presente, vale destacar. Os ataques de conservadores, bolsonaristas ou não, continuam e todo o peso da canção é uma luta diária. Administrar os contratempos que a vida coloca para todos fica uma tarefa ainda mais difícil quando outros indivíduos fazem questão de projetar suas frustrações ao invés de encarar seus próprios fantasmas.
Não é difícil encontrar exemplos parecidos em canções de outros membros da comunidade LGBTI+, do presente e do passado. Dar voz às dificuldades e sentimentos é parte de um processo de conscientização sobre o que a humanidade faz questão de negar: as diferenças, o respeito, o respeito às diferenças.
A decisão do STF, que já foi atacada pelo ocupante do cargo máximo do Poder Executivo, precisa estar estampada em todos os lugares. É como se só agora, só a partir de 13 de junho de 2019, o direito de existir independente do ódio alheio tenha sido concedido a nós, lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, interessexuais e todos aqueles que não são heterossexuais. É mais que necessário haver um dispositivo legal que puna aqueles que acreditam que toda opinião está respaldada pela liberdade e que não conseguem distinguir preconceito dessa tão defendida opinião. A lei, por si só, não é sinônimo de segurança. Ela é uma esperança ou um caminho.
Muito ainda precisa ser feito para conscientizar os intolerantes religiosos, políticos e sexistas. É um trabalho árduo, muito árduo, afinal, não deveria ser necessário precisar argumentar a favor da própria existência, assim como não deveria ser mais surpresa que mulheres são capazes de pilotar um boeing. Porém, são passos de tartaruga e não podemos esquecer que nossas ações, mesmo infinitesimais no tempo, são parte de um esforço contínuo e necessário. Nós também moldamos o mundo, agora resguardados de opiniões violentas e não-construtivas.