Vamos fazer um exercício de reflexão e abstração. Você, homem heterossexual, está com quase 40 anos e já é doutor e professor de uma universidade pública. Provavelmente favorecido pela vida para não precisar trabalhar nos anos de faculdade, mestrado e doutorado, dedicou todo esse tempo de “intensa pesquisa” para conhecer o que é a vida e o que provavelmente existe além dela. Essa vida além da vida, conhecida por uns como o Paraíso ou até mesmo como o Inferno, é governada por uma entidade superiora que detém um conhecimento infinitamente maior que o seu. Por mais que você tenha estudado todas as teorias econômicas, literárias, físicas, teológicas, médicas e científicas, você ainda não estudou tudo o que precisa para alcançar um entendimento pleno sobre o Tudo.
Você tem o título de doutor e é mestre em artes. Há dez anos sua rotina é estudar, ensinar e produzir artigos para conseguir mais pontos na Capes e na Fapesp. Um detalhe importante é destacar que você tem alunos, afinal, você é obrigado a dar aula para receber o salário gordo da universidade; porém você fica ludibriando esses alunos com conhecimentos ultrapassados e que não serão suficientes para nada, além do mero diploma que eles precisam. Sim, você não ensina nada e dedica seu tempo apenas aos seus estudos e sua produção. ‘Foda-se o que eles precisam ou não aprender, se quiserem algo a mais, eles precisarão se aprofundar sozinhos durante o mestrado e doutorado para terem um entendimento do mundo próximo ao meu!’ É assim que você pensa.
Como você se sentiria em relação à vida? Não considere essa dos livros e da sua necessidade incessante busca por conhecimento. Sem pensar em ninguém, você só pensou nos mistérios que podem existir além dessa vida. Essa é sua área de estudos, sua vida. Considere também que você, caro doutor de mente amargurada, não é rico e não tem nenhum apartamento com mais de 40m², no alto de um edifício em uma localização privilegiada de São Paulo. Você, doutor, tampouco tem fama e nem esplendor. Estamos no século XVII ou XVIII (tanto faz porque a universidade quase sempre foi a mesma). Sem temer à Deus ou ao Satanás, você resolve usar magia para entreabrir-te algum mistério,| que eu já que não deva, oco e sonoro, | ensinar a outrem o que ignoro.
O que você faria se pudesse realmente usar magia e invocar um gênio que te desse poderes sobrenaturais para conseguir alcançar esse mistério ou te realizar o desejo de finalmente ter fama na academia? Você teria seu esforço de estudo reconhecido pelos seus pares. Além disso, “de sobra” venderia alguns livros para serem usados nos cursos de graduação do país e do exterior? Seu nome seria citado em todos os trabalhos acadêmicos de quem ousar estudar sua área de atuação (e de outras áreas, se possível, também). Ser o fodão da área mesmo!
Este, com algumas ressalvas, é o enredo de Fausto, de Goethe. O personagem central, que dá nome ao poema, consegue usar a magia para invocar um gênio. Depois de fazer “uma sátira do ensino universitário contemporâneo” (de qual século: XVIII ou XIX?), o gênio diz não ser o departamento dele conceder o desejo do âmago de Fausto. “Por gentileza, dirija-se ao departamento de relações editoriais para, pessoalmente, manifestar o interesse em ser o próximo fodão de nossa faculdade.” Claro que não é isso que o gênio responde, ele apenas diz que o babado não é com ele.
Neste exato momento, um aluno do doutor (sim, com letra minúscula) Fausto bate à porta de sua sala para tirar uma dúvida da última aula ou para lembrar alguma regrinha da ABNT para a formatação de um artigo assinado por ele E por você (claro!). O orientando, um “discípulo” da época de Goethe, conversa algo com o “mestre” para preparar o terreno para fazer a tal pergunta idiota.
Na verdade, essa parte não importa mais porque a mais interessante da primeira parte do poema é quando ele descobre que um cachorro no meio da praça se interessou por Fausto. Ao caminhar com o discípulo pela rua, o doutor avista um cachorro que o observava de forma incomum. O cachorro o segue até o seu cômodo da universidade e lá revela ser um demônio chamado Mefistófeles. Tcharan! Essa parte não é invenção desse texto não, ok? Acontece isso mesmo!
Essa é a forma Goethe introduz a cena do pacto que Fausto fará com o demônio para ter cada vez mais conhecimento e desvendar os mistérios do universo. Vale uma correção: não foi bem um pacto, mas sim uma aposta. Depois de ouvir a lábia de Mefistófeles, Fausto é quem faz uma aposta com o tinhoso. A lógica é a seguinte: a alma dele seria do demônio de qualquer forma, conforme já haviam combinado. Isso poderia ser depois de 40 ou 50 anos. Logo, não faria tanta diferença o tempo, contanto que ele conseguisse aproveitar a vida até o dia que sua alma já não seria nada para ele. “Pode levar, fique à vontade! Já curti o suficiente!”, você provavelmente teria pensado o mesmo com tal possibilidade. Sendo assim, Fausto diz o seguinte:
Se eu me estirar jamais num leito de lazer, Acaba-se comigo já! Se me lograres com deleite E adulação falsa e sonora, Para que o próprio Eu preze e aceite, Seja-me aquela a última hora! Aposto! e tu? (Quarto de trabalho, versos 1.692-8, p. 169)
A partir desse contexto, do livro e da reflexão proposta lá no começo desse texto, é surreal pensar o que será que tão prazeroso ao Fausto ou a você “doutor” na mesma situação. Uma das explicações de nota de rodapé, escritas por Marcos Vinícius Mazari, diz que “(…) se a inquietação de Fausto, se a sua eterna aspiração aplacar-se algum dia e ele entregar-se a um ‘leito de lazer’, à indolência e à fruição hedonista, se vivenciar um momento de felicidade em que possa exclamar: ‘Oh, para! És tão formoso!’, então Mefisto terá ganho a aposta” (nota 13, p. 169). Nos dias de hoje, há pessoas que perderiam a aposta fácil em alguns primeiros encontros que a vida proporciona…
Fica, portanto, a pergunta: o que será que irá satisfazer Fausto? Para essa tarefa, os candidatos são: o amor com Margarida; uma festa com a galera do rolê de Mefisto no monte Valpúrgis; o reconhecimento de um rei que verá seu reinado ir pro saco porque ele não tem mais ouro no cofre; o amor de Helena de Troia, a mesma que Angelina Jolie interpretou no filme Troia. Ah, não, a mulher mais linda de Hollywood da época era considerada a Diane Krüger (Who?); Enfim, continuando: ser um colono de terras de uma era feudal e conseguir construir um local no qual os seus servos alcançarão a liberdade total de seu estado de servidão e serem livres do capitalismo – Ops, é do feudalismo e não do capitalismo, ok?; ser morto por um trio muito doido que lembra as moiras do desenho Hércules; ou uma bebedeira muito topzera, no meio da semana, com os alunos da faculdade em uma taverna.
Basicamente essas são as alternativas de Mefistófeles para agradar Fausto e ganhar a aposta desse mortal afrontoso.
O clássico e a liberdade temporal da poesia
Quando comparamos esse enredo com os da Divina Comédia, de Dante Alighieri; Paraíso Perdido, de John Milton; Odisseia, de Homero; ou Ilíada, de Virgílio, a coisa parece ser bem mais diferentona, como todo hipster gosta.
O poema tem elementos (principalmente a forma dos versos) dos clássicos e de temas atuais para Goethe. Além de elementos, há a fusão deles, colocada no poema como Eufórion, filho de Fausto com Helena – o casamento dos séculos, feito em um palácio cheio de paparazzi onde todo mundo pinta a unha de branco pela #Paz; uma celebração do clássico com o contemporâneo, bem rococó, bem tema do Encontro com Fátima Bernardes. Porém, para dar credibilidade às metáforas sérias aqui construídas, usemos as palavras do próprio Goethe:
“Eurórion não é um ser humano, mas apenas um ser alegórico. Nele encontra-se personificada a Poesia, a qual não está presa a nenhum tempo, a nenhum lugar e a nenhuma pessoa. O mesmo espírito a quem apraz depois ser Eufórion, surge agora como o mancebo-guia, e nisso ele se mostra semelhante aos espectros que podem estar em toda parte e aparecer a qualquer hora.” (citação de Mazzari, p. 680)
Ou seja, o uso de elementos clássicos com os contemporâneos do poeta, Goethe mostra o quanto atemporal é a poesia e está presente em nossa sociedade desde a Antiguidade Clássica. Além disso, essa parte do poema permite interpretar que Goethe fez da união de seu personagem com a do mito grego, Helena, uma forma de superação e dominação (no sentido bom) do clássico para a criação de uma nova forma de fazer poemas. Isso é ousado dizer e seria necessário anos de estudo para sustentar essa hipótese, contudo, para qual outro motivo Goethe iria trazer Helena das tumbas, fazer os versos épicos dela se misturarem ao livre e quase sem rimas de Fausto e, no fim disso, ainda gerar um filho porra-loca e mimado que não para quieto e quer voar a todo custo?
Por usar diferentes formas de métrica nos versos do poema, Goethe faz delas características de seus personagens. Mefistófeles não tem a fala culta dos arcanjos de Deus e isso nos é ressaltado pelo próprio capiroto logo no prefácio do livro. Helena tem a métrica diferente da de Fausto, mas mesmo assim se entendem (muito bem) a ponto de ter um filho.
O pensamento de Goethe deve ter sido: “Ah, então todos estão escrevendo igual Dante e Homero, então vou dar uma modernizada nesse mene: Vocês querem, @s poetizantes?” (Brincadeira! Me perdoe Goethe!)
Longo e profundo demais? ‘Oh, para! És tão formoso!’
O poema tem, ao todo, 12.111 versos, divididos em, basicamente, sete partes: os prefácios e uma espécie de Introdução; e mais cinco partes bem divididas de acordo com os grandes temas que Goethe quis apresentar em Fausto. Em termos práticos: as duas primeiras partes são publicadas, juntas, na Primeira Parte de Fausto, pela Editora 34; e as cinco demais na Segunda Parte, um livro bem mais robusto que o primeiro. Apresentadas em edição bilingue pela Editora 10+24, as duas partes foram traduzidas por Jenny Klabin Segall, contam com texto de apresentação, notas e comentários de Marcus Vinícius Mazzari e ilustração de dois artistas diferentes: Eugène Delacroix (mais bonitas) e Max Beckmann (mais abstratas).
Apesar de o tamanho e o gênero da obra (poesia) assustarem um pouco, a leitura de Fausto não é extremamente complexa e pode render ótimas reflexões e estudos. O enredo, sem nenhum segredo para entender e acompanhar (graças às notas e comentários), se torna praticamente secundário quando o leitor quer refletir sobre as críticas feitas por Fausto e Mefisto ao sistema universitário da época (que vale para hoje, obviamente) e sobre diversos outros assuntos. De certa forma esse livro tem uma “metalinguagem” incrível. É o que os acadêmicos dizem de o livro se “realizar nele mesmo”. Isso acontece porque é possível se deter em um verso de cada vez para estudar aquele discurso, aquela métrica e aquela composição de personagens e qualquer outro tema possível em Fausto. Goethe deu muito pano para a manga da academia, afinal, até hoje há quem estuda tudo o que é possível sobre as metáforas, inspirações e críticas de Fausto – assim como o personagem Fausto fazia com seu título de doutor.
Embora genialidade do escritor possa não ter relação com os seus anos de carreira, Fausto parece ser algo que não se encaixa nessa e em nenhuma outra “regra”. Essa é a obra da vida de Goethe: o autor levou 60 anos para concluí-la. Dizem que para algumas bebidas alcoólicas o tempo as tornam melhores. Se isso se aplica à literatura, o tempo de destilação de Fausto deveria ter sido muito maior. O livro já é genial. Imagine o que teria sido se Goethe ainda estivesse escrevendo como faz Shonda com a arrastada da Meredith Grey? Uma série dessas no Netflix, bicho, iria estourar toda e qualquer emissora de canal aberto!
Sendo assim, as evidências para a qualidade da obra, embora borradas com algumas piadas aqui e acolá por este texto, são irrefutáveis. Desde que foi finalizada, em 1832, até hoje, Fausto é referência e inspiração. Thomas Mann, por exemplo, se apropriou de Goethe para fazer o seu Doutor Fausto (que estou ansiosíssimo para ler, especialmente depois de ler o “original”). Talvez essa influência de Goethe se dê por conta da história, afinal, a história do Doutor Fausto não é uma criação do poeta, mas sim uma apropriação de um mito regional da região da Alemanha. O poeta, ainda quando era criança, assistira a um teatro de marionetes com o mesmo enredo. Contudo, apesar de ser uma inspiração, o Fausto de Goethe passou a ser considerado a Definitive Edition da história e vale ser lida até hoje para continuar a reflexão sobre o sistema universitário, sobre a vida, sobre o amor e sobre todos os tópicos do homem moderno do século XVIII e do XIX.
Se você gostou da crônica e não ficou bravinh@ com as brincadeiras, deixa um comentário aqui! Se você já leu Fausto, o que achou do livro? Minha interpretação e impressão ficou muito diferente da sua? E se você não leu, ficou com vontade?