Sempre tive curiosidade de ler “20 mil léguas submarinas”, de Jules Verne, por conta do filme “A Esfera” (1998). No longa, uma esfera dourada, supostamente alienígena, é descoberta no fundo do oceano e um grupo de cientistas é levado até lá para estudá-la. Um desses cientistas, interpretado por Samuel L. Jackson, estava lendo a obra de Verne e algo curioso começa a acontecer. No filme dirigido por Barry Levinson, o personagem de Jackson só lia a obra de Verne até um determinado capítulo, pois ele tinha medo de um animal gigantesco que até ali ameaçava a estabilidade dos personagens de Verne. “Hmmm interessante…”, foi o que sempre pensei nas inúmeras vezes que assisti a esse longa.
Fora a questão do filme, quem nunca fantasiou sobre os animais e segredos que se escondem nos pontos mais profundos dos sete mares? Filmes sobre essa curiosidade não faltam, embora tenhamos o costume de olhar mais para o espaço que para nosso próprio planeta…
No geral, a leitura é bem interessante, mas achei “científica demais” e isso não é sem motivo. Ela foi publicada em uma revista de divulgação científica para jovens franceses, a Magasin d’Éducation et de Récréation, entre março de 1869 e junho de 1870. A revista se propunha a trazer conhecimentos científicos para o público leigo e, em uma de suas seções, romances que davam uma nova abordagem à geologia, biologia, além de outras áreas, e suas descobertas mais recentes daquela época. Sendo assim, dá para descontar do desfile gigante de nomes científicos e descrições que parecem ter saído de um livro do Ensino Médio.
Por falar nisso, fiquei imaginando como seria rico usar essa obra em aulas de Biologia, de Geografia e até de História, afinal, não faltam referências às viagens marítimas da época das grandes navegações europeias, latitudes e longitudes pelo globo e, claro, menções aos diferentes grupos de seres da flora e da fauna marítima em cada canto do globo.
Para quem não conhece a obra, ela retrata literalmente uma viagem de 20 mil léguas em um submarino extremamente moderno para o século XIX. Para contextualizar, um resumo “pequeno”: um monstro marinho começa a despertar a curiosidade em vários países. Avistado por diversas embarcações, em uma época de intensas movimentações pelos mares e oceanos do globo, pipocam, aqui e ali, os relatos desse monstro que logo ficou famoso e muito procurado. Quem nos conta esses detalhes é o professor Aronnax, um especialista em vida marinha, que parte em uma missão para encontrar e caçar esse ser, que ele acreditava ser um “narval”. Nessa viagem, Aronnax leva seu criado, Conselho (sim, este é o nome dele, que vem do francês Conseil) e lá conhece um caçador de baleias canadense, Ned Land, responsável por acabar com a vida do tal monstro. Eis que, depois de um encontro e um embate frustrados em alto mar, o narrador e os dois personagens citados caem do navio e descobrem que, o que até então supunham ser uma vida marinha de proporções descomunais, na verdade era o Nautilus, um submarino comandado pelo capitão Nemo, um sujeito misterioso que se distanciou da humanidade e alimenta um certo ódio pelas relações de dominadores e dominados nos (ditos) “países civilizados”. Aronnax, Conselho e Ned Land se tornam prisioneiros de Nemo e, a bordo do submarino, começam a jornada submarina repleta de descobertas fascinantes e conflitos interiores que contrastam as maravilhas que Aronnax vê e seu estado de liberdade cerceada pelo capitão.
Por não ser formado nem em Biologia, Zoologia, Geografia ou qualquer das áreas relacionadas à vida marinha, não consegui aproveitar 100% da obra. Porém, a cada novo capítulo que eu lia, fiquei imaginando como seria sensacional ter estudado essas disciplinas do Ensino Básico com apoio do livro. Na viagem de 20 mil léguas, o Nautilus passa pela maioria dos mares e oceanos do globo. Nessa jornada, Aronnax, que de priosioneiro passa a ser um passageiro deslumbrado com o que via de dentro do submarino, relata a flora e a fauna em cada uma de suas paradas e passagens. Falei que não aproveitei 100% da obra porque ela é repleta de nomes científicos e descrições desses animais e plantas que povoam as águas desbravadas pelo Nautilus. É muito interessante ver que Jules Verne fez questão de descrever quais eram os seres vivos típicos de cada uma das regiões, transformando a viagem, que poderia ser massante, em um estudo e um relato da riqueza das águas salgadas da Terra. Se não bastasse isso, o autor ainda se dedica a trazer informações interessantes sobre navegações, descobertas e acontecimentos históricos relavantes em cada parte do globo.
Com tanta informação relevante, imagino que professores, de diversas disciplinas da Educação Básica, devem se deliciar com possibilidades infinitas de atividades e estudos. Quando me deparo com leituras que despertam esse “lado docente”, fico criando mentalmente essas possibilidades: talvez dividir os capítulos da obra de Verne entre a turma e pedir pesquisas de imagens dos peixes citados; pedir aos estudantes para traçar a rota do Nautilus com base nas latitudes e longitudes que Aronnax nos revela; elencar as informações históricas sobre as descobertas e navegações relatadas na obra e refletir sobre as épocas em que cada uma aconteceu…
São tantas essas possibilidades que, pra mim, a leitura foi bem agradável. Apesar de ser muito científica e ter pouca ação – afinal, a maior parte do tempo os personagens estão confinados no Nautilus e só observam a vida submarina de dentro da embarcação – é indiscutível a importância da obra de Verne para a história da literatura científica. Várias vezes me peguei imaginando qual era a recepção da obra pelo público ao qual ela se destinava. Sem internet, jovens franceses do século XIX podiam contar apenas com livros e outras publicações para conhecer um pouco mais sobre o mundo. Sendo assim, 20 mil léguas cumpre com o papel de levar o leitor nessa viagem e quebrar a barreira do espaço. Ao apresentar detalhes da flora e da fauna do Mar Vermelho, por exemplo, os leitores da época também conseguiam informações históricas, religiosas e científicas sobre o porquê desse nome tão peculiar.
Para mergulhar nessa fantasia (e aqui fica uma dica para quem vai ler), tentei fazer a leitura seguindo a ordem de sua publicação original, lendo de dois em dois capítulos, e pensando como Verne conseguia suspender o leitor e despertar sua curiosidade para a sequência do próximo número da Magasin. Segundo a apresentação de Rodrigo Lacerda, na edição da editora Zahar, “20 mil léguas submarinas” foi um dos três maiores sucessos de Verne e da revista na qual ela foi publicada.
Por fim e como sempre, duas reclamações. Pra mim, a apresentação de Lacerda dá dois furos: O primeiro é um spoiler sobre o capitão Nemo e, por isso, aconselho adiar a leitura dessa parte da edição da Zahar – isso aumenta o mistério que envolve o personagem ao longo da obra; O outro ponto é a afirmação de que Verne é pai da ficção científica, desconsiderando (obviamente) Mary Shelley e sua obra “Frankstein”, além de outras obras que, aqui e ali, já tinham aliado ciência e literatura. O título de Verne é compreensível, dado o sucesso que o autor fez com suas obras e a influência que ele exerceu no gênero, porém parece ser bem injusto.
De qualquer forma, “20 mil léguas submarinas” é muito interessante também para quem estuda Divulgação Científica – fico imaginando como é que o mestrado que fiz nessa área não abordou em nenhum momento essa obra e esse gênero literário!!!! Afinal, Verne consegue aliar de forma bem interessante os conhecimentos acumulados até o século XIX sobre a vida marinha com uma fantasia envolvente e curiosa. Não apenas a obra, como também a revista na qual ela foi publicada, me faz pensar em como a ciência perdeu a importância nos dias atuais. Hoje, consigo me lembrar de duas revistas científicas: a Superinteressante e a Revista Fapesp. A primeira foi a publicação que me motivou a estudar jornalismo. Minha mãe adorava a revista e a assinou por um tempo quando eu e minha irmã ainda eramos crianças. Cresci lendo algumas das matérias da Super e lembro que me encantava com as informações e com a forma como elas eram apresentadas. Embora não consiga falar com propriedade sobre a qualidade da revista atualmente, tenho a impressão que ela se distanciou muito de um propósito de fazer divulgação científica. Já a segunda, Revista Fapesp, é uma publicação extraordinária. A Fundação para Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) mantém a publicação há anos e traz, em cada uma de suas edições, as novidades dos pesquisadores brasileiros nas mais diversas áreas do conhecimento. Ela é genial e traz uma linguagem um pouco mais simples, cumprindo com a missão de divulgar a ciência para um público “quase” leigo.