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10 curiosidades sobre a formação familiar e intelectual de Marx (1818-1841)

HEINRICH, Michael. Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna: biografia e desenvolvimento de sua obra, volume 1: 1818-1841. Tradução Claudio Cardinali. 1a ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

A editora Boitempo lançou, no dia 16 de maio de 2018, o primeiro volume da biografia de Karl Marx. Elaborada por Michael Heinrich, a obra titulada “Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna: biografia e desenvolvimento de sua obra”, abrange os anos da infância e juventude, entre 1818 e 1841 (23 anos). Deste período, contudo, não há muitos relatos escritos nem pelo próprio Marx, que nunca fez uma autobiografia, e nem por outras pessoas mais próximas a ele (com exceção dos relatos de sua filha, Eleannor). Também não há muitas cartas, embora Marx se comunicasse bastante por meio delas com sua família e com sua esposa.

Para contornar essa questão, o autor faz um trabalho grande para apresentar ao leitor o contexto social, político e econômico no qual Marx cresceu e se desenvolveu. Com essa estratégia, Heinrich consegue apresentar qual foi a educação que Marx recebeu em casa, na escola e na universidade. Com base nas informações disponíveis, o biógrafo traça perfis de professores, diretores, ministros prussianos, além de características das cidades e da sociedade do século XIX.

Essas informações são muito valiosas porque eu, como leitor, não senti falta de saber de detalhes da infância de Marx, por exemplo. Ao conhecermos mais de perto sua família, em especial a mãe e o pai de Marx, é possível ter uma ideia de como ele era quando criança e qual o peso desse cenário em seu desenvolvimento como indivíduo.

Como a obra é muito rica em detalhes e explicações, selecionei aqui algumas das curiosidades e fatos mais interessantes. Esses pontos, no geral, revelam mais das pessoas que colaboraram para o desenvolvimento de Marx e menos do que ele realmente era naquelas primeiras décadas de sua vida.

Todas as citações abaixo se referente à biografia feita por Michael Heinrich. Por ser um texto baseado em uma única obra, abri mão da ABNT para deixar o texto menos carregado.

1) “Sobre a questão judaica”: a família paterna de Marx, seu pai e o judaismo

Marx nasceu em Trier, no dia 5 de maio de 1818.

Os pais, Heinrich (1777-1838) e Henriette (1788-1863), casaram-se em 1814. Ambos vinham de famílias judaicas, mas converteram-se ao cristianismo protestante. Karl Marx foi batizado em 26 de agosto de 1824 [com 6 anos, portanto], junto com os seis irmãos nascidos até então. Na ocasião, o pai já havia sido batizado – porém não se sabe a data exata desse acontecimento. A mãe foi batizada um ano mais tarde, no dia 20 de novembro de 1825. No batismo dos filhos, ela declarou, segundo o registro da paróquia, que não queria ser batizada enquanto seus pais ainda estivessem vivos, por respeito a eles, mas queria que os filhos o fossem. (p. 40)

O pai de Marx era advogado e resolveu ser batizado por conta da proibição que os judeus tinham para entrar na vida pública da Prússia, daquela época. É sabido que os judeus sofriam, quando não perseguições, barreiras muito grandes para prosperarem na vida pública prussiana. Na verdade essa questão era quase impossível. Imagine, portanto, o que acontecia quando o indivíduo era filho de um rabino? Um trecho da biografia de Marx revela quão forte era a religião na família de seu pai:

Heinrich (nascido Herschel) Marx provavelmente veio ao mundo no dia 15 de abril de 1777, em Saarlouis, como segundo filho de Mordechai (também chamado de Marx Levi, c. 1746-24 de outubro de 1804) e sua esposa, Chaje Lwów (também chamada Eva Levoff, c. 1757-13 de maio de 1823). O casal teve outro filhos. Inicialmente, Mordechai era rabino de Saarlouis; depois, entre 1788 e sua morte, rabino de Trier, onde substituiu seu falecido sogro, Moses Lwów (?-1788). […] Os rabinos não eram apenas pastores e professores. Nas comunidades judaicas, que resolviam suas questões internas autonomamente até o fim do século XVIII, também atuavam como juristas. […] Com frequência, o alto prestígio dos rabinos não era correspondido com altas rendas nem sequer com rendas satisfatórias; não raro, precisavam de outra profissão para ganhar dinheiro. Também o avô de Karl Marx, Mordechai, exerceu seu cargo sob condições mais ou menos precárias, trabalhando simultaneamente como comerciante. Após sua morte, o posto de rabino ficou num primeiro momento vago, até que seu filho mais velho, Samuel (1775-1827), tornou-se rabino de Trier. Este declarou, em 1808, em seu nome e de seus irmãos, que eles adotariam o sobrenome Marx. Até o início do século XIX, os judeus muitas vezes não tinham sobrenomes. (p. 61-3)

Tendo a realidade batendo em sua porta, Heinrich se deu conta de que não haveria outro caminho para prosperar, ele precisava ser batizado se quisesse alcançar os altos escalões do Direito daquela época.

Ali cresceu Heinrich Marx, sob condições muito simples e em espaço bem reduzido, situação da qual ele claramente queria se libertar. Mas tal caminho não foi fácil, como as poucas alusões em cartas a seu filho Karl demonstram. Em novembro de 1835, ele escreveu a Karl, que na época estudava em Bonn: “Desejo ver em você aquilo que talvez teria sido de mim se eu também tivesse vindo ao mundo sob tão favoráveis auspícios”. (p. 63)

Essa questão do judaismo é bastante complicada na obra de Marx. Em “Sobre a questão judaica” (Boitempo, 2010), por exemplo, Marx dialoga com Bruno Bauer e defende que os judeus não deveriam ter que abrir mão de sua religião para serem aceitos na vida pública. Conforme comentado no vídeo sobre essa obra, Marx reforçava que a religião era apenas um estágio da vida do homem e, acima de tudo, seria preciso se emancipar da religião. A obra em questão é criticada por opositores de Marx que o julgam até de antissemita por conta de algumas observações que ele fala – como “o Deus dos judeus é o dinheiro” . No fundo essas são críticas muito injustas com a história de Marx, afinal, apesar de ele não ter crescido em uma família declaradamente judia, a tradição estava presente durante seu desenvolvimento – lembrando: seu avô e seu tio foram rabinos! Claro que as pessoas podem se revoltar contra suas raízes e atingir níveis de violência verbal gigantescos, contudo, essa parece ser mais uma característica de nossa sociedade (século XXI) que da sociedade na qual Marx cresceu e se desenvolveu.

2) Filho de peixe…

A estratégia do pai de Marx, de se batizar para conseguir alcançar grandes cargos na vida pública e no sistema judiciário, deu mais que certo – vide, por exemplo, a citação já mencionada na qual Heinrich, o autor da biografia, revela a situação financeira da família. Contudo, para além da questão financeira, o pai de Marx lembra muito o que conhecemos do filho pelas suas obras. O tom ácido e retórico de Marx e, acima disso, a coragem nos ataques e ironias que ele faz em seus textos, parece ter vindo do pai. Após relatar alguns acontecimentos nos quais o pai de Marx se envolveu como advogado, Heinrich destaca o seguinte:

Considerando todos esses acontecimentos, torna-se nítida a difusão de posições esclarecidas e liberais na década de 1830 – em especial dos membros do aparelho judicial, assim como do prefeito Haw. Heinrich Marx tinha muitos amigos e conhecidos que pertenciam a tais círculos. Ele chegou até mesmo a representar o prefeito diante do tribunal. O fato de que Heinrich Marx foi eleito para o comitê que organizou a recepção dos deputados de Trier, fazendo inclusive o discurso de abertura, mostra quanto ele era estimado nesses círculos críticos. Considerando as circunstâncias da época, seu discurso foi corajoso afirmando sua posição crítica também em público. Presume-se que o jovem Karl Marx tenha acompanhado esses acontecimentos, inclusive a postura crítica de seu pai de maneira bastante consciente. (p. 96)

3) Família materna na TV!

Na biografia feita por Heinrich, a mãe de Marx, 
Henriette, também é uma figura bem interessante. Embora o autor escrava bastante sobre a relação dela com o filho e, principalmente, com o marido, encontrei uma coisa interessante sobre a família dela:

No dia 22 de novembro de 1814, casavam-se Heinrich Marx, já com 37 anos de idade, e Henriette Presburg, onze anos mais jovem. Proveniente da cidade de Nijmegen, nos Países Baixos, Henriette nasceu no dia 20 de setembro de 1788 como filha de Isaak Presburg (1747-1832) e sua esposa, Nanette Cohen (c. 1764-1833). Ela teve três irmãos mais novos: David (1791- após 1829), Markus (também chamado de Martin, 1794-1867) e Teitie (1797-1854), que posteriormente passaria a se chamar Sophie e se casaria com Leon Philips (1794-1866). Karl Marx também teria, anos depois, mantido relações com a família Philips. O neto de Sophie e Lion fundaria, em 1891, o grupo Philips, existente até hoje. (p. 67)

4) Jenny não era qualquer esposa arranjada

Deixando a formação familiar de Marx de lado, é hora de falar de duas pessoas que tiveram grande importância em sua vida: a esposa, Jenny, e seu sogro, Ludwig von Westphalen.

Jenny nasceu no dia 12 de fevereiro de 1814, em Salzwedel, e foi batizada como Johanna Bertha Julie Jenny. Ela foi a primeira filha que Ludwig von Westphalen teve com a segunda esposa, Caroline. […] Em Trier, Jenny cresceu com seu meio-irmão Carl, nascido em 1803; sua irmã Laura, nascida em 1817 (mas que morreu já em 1822); e seu irmão Edgar, nascido em 1819. Uma irmã de sua mãe morava na mesma casa. Além disso, havia empregados a serviço da família, o que era comum em núcleos da alta burguesia. (p. 164-5)

Em várias biografias já disponíveis no mercado, há boatos sobre a relação de Marx com a esposa, Jenny – inclusive alguns afirmam sobre um filho dele fora deste casamento. Estas informações, obviamente, ainda não estão no primeiro volume da biografia de Michael Heinrich, afinal, essa parte da obra só contempla os primeiros 23 anos de Marx. Contudo, apesar dos possíveis erros e inconvenientes que o casal sofreria no futuro, a relação dos dois já parecia uma montanha russa até 1841. Jenny era mais velha que Marx e, naquela sociedade, o ideal seria se casar ainda jovem e com um homem mais velho. Os dois fugiram à regra e cultivaram a relação mesmo à distância, mas Jenny chegou a quase desistir de se casar com Marx quando ele já estava na universidade de Jena e parecia mais distante por conta da falta de notícias enviadas por carta tanto para ela quanto para seus pais.

Apesar destes detalhes, Jenny foi uma pessoa incrível. Além de ela ter enfrentado os costumes da sociedade para se casar com Marx, ela também esteve do seu lado durante toda a vida, chegando até a redigir seus manuscritos quando a saúde de Marx já estava declinando, em seus últimos anos. Essa genialidade de Jenny aparentemente veio do pai, Ludwig von Westphalen.

Não se sabe se Jenny frequentou a escola. O ginásio em que seu irmão Edgar estudava com Karl Marx era exclusivo para rapazes, como era comum na época. Ela possivelmente frequentou uma das escolas secundárias para moças que havia em Trier. […] A formação que Jenny recebeu na casa de seus pais excedia em muito a educação que as mulheres, inclusive as de círculos burgueses, costumavam receber na época. Em carta enviada por Carl von Westphalen a seu irmão Ferdinand no dia 11 de fevereiro de 1836, lê-se que Jenny teve, posteriormente, aulas de inglês com um professor de línguas, de nome Thorton, que não falava alemão, apenas francês, de modo que os exercícios de tradução eram do inglês para o francês. Em um círculo de leitura, Jenny também lia muitos livros franceses. Carl relata que Ludwig von Westphalen, ao chegar do Cassino, à noite, costumava fazer um resumo das notícias dos jornais. A influência de Ludwig no desenvolvimento intelectual de Jenny deve ter sido no mínimo tão forte quanto sua influência sobre Karl Marx. Inspirados por ele, ambos começaram a gostar de Shakespeare, o que se manteve pelo resto da vida; ele provavelmente também contribuiu para que ambos desenvolvessem, desde jovens, um olhar atento às relações políticas e sociais. (p. 167)

5) O sogro de Marx e seus primeiros contatos com ideias socialistas

Já ficou mais que evidente que o sogro de Marx, Ludwig von Westphalen, tinha uma preocupação com o desenvolvimento intelectual de seus filhos, incluindo aqui Jenny. Além disso, é interessante observar que as relações das famílias Marx e Westphalen iam muito além e anterior ao casamento de Karl e Jenny.  Os dois tiveram relações amistosas durante muitos anos: eram membros da congregação protestante de Trier e faziam parte da Sociedade do Cassino. Embora não haja informações precisas sobre como e onde essa relação das duas famílias começou, Marx guardou, por muito tempo, uma imagem bastante positiva do sogro. Inclusive foi Ludwig quem primeiro apresentou ideias de socialistas de Saint-Simon a Marx:

Em 1909, [Maxim] Kowalewski [historiador e sociólogo russo] publicou suas memórias de Karl Marx. Entre outras coisas, Marx lhe contara que seu sogro, Ludwig von Westphalen, teria sido um entusiasta das teorias de Saint-Simon e o primeiro a lhe falar de tais teorias. Henri de Saint-Simon (1760-1825) considerava a “classe industrial” – que para ele era composta de todos aqueles envolvidos na produção de bens e serviços – a única classe produtiva. Contrapondo-se a essa, estaria a classe parasitária e superficial da nobreza e do clero, que seria, infelizmente, predominante no país. Saint-Simon não negava a propriedade privada, tampouco o modo de produção capitalista. Ainda assim, considerando sua crítica fundamental à nobreza e ao clero, não surpreende que ele e seus seguidores tinham sido considerados revolucionários perigosos tanto na França da Restauração quanto na Prússia. (p. 108)

6) Casos de família: Meu cunhado é marxista e eu Ministro do Interior conservador!

Na família de Jenny, contudo, nem tudo foram flores o tempo todo. Se o pai e o sogro de Marx exerceram fortes influências e manifestaram orgulho da carreira que o jovem Karl seguia, o mesmo não se pode dizer de outros membros da família dela.

Jenny teve uma relação por vezes difícil com Ferdinand, filho mais velho do primeiro casamento de seu pai. A fim de concluir o ginásio, Ferdinand havia ficado em Salzwedel quando a família se mudou, em 1816, para Trier.  (p. 165)

A madrasta burguesa parece ter se tornado cada vez mais inconveniente aos olhos de Ferdinand. Em carta do dia 1º de dezembro de 1839, enviada à noiva, Luise von Florencourt, ele chama a madrasta de “pessoa repulsiva”. Caroline, por sua vez, não lhe virou as costas e continuou enviando-lhe cartas até pouco antes de sua morte, em 1856. Ainda assim, parece que Ferdinand – que fez uma notável carreira após a morte de seu pai e que, no “período reacionário” após a derrota da Revolução de 1848-1849, chegou ao posto de ministro do Interior da Prússia – sempre a considerou uma mácula. Em 1859, ele publicaria os documentos de seu avô sobre as campanhas militares do duque Ferdinand [von Braunschweig] na Guerra dos Sete Anos, introduzindo também uma pequena história da família – na qual o segundo casamento de seu pai, bem como os filhos que ele teve com Caroline, simplesmente não é mencionado. Àquela época, mais um acontecimento deve ter-se somado à aversão pela madrasta burguesa: sua filha havia se casado com Karl Marx, que, após a Revolução de 1848-1849, passou a ser considerado um perigoso agitador na Prússia – parentesco nada conveniente para um ministro do Interior conservador. (p. 166)

7) Uma formação neo-humanista, preocupada com questões sociais e políticas

Como eu comentei no começo do texto, não há muitas informações sobre essa fase da vida de Marx. Assim, para falar de sua formação educacional, Heinrich recorre a analises de figuras importantes que o influenciaram direta ou indiretamente na educação básica e na universidade. A primeira figura que aparece é o diretor do Ginásio de Trier, Johann Hugo Wyttenbach. Ele teve um pensamento fortemente influenciado pelo Iluminismo, foi até apoiador dos jacobinos franceses, e manteve suas convicções liberais e humanistas em território prussiano. Aclamado pela forma como o diretor lidava com os jovens, ele também era:

[…] fascinado desde cedo pela Antiguidade clássica, as ideias de ensino neo-humanista caíram em solo bastante fértil. Sua influência sobre os alunos se dava principalmente nas aulas de história – que ele reservava para si mesmo – nos últimos anos do ginásio. Segundo Gross, Wyttenbach, partindo da antiguidade clássica, utilizava “a aula de história para levar um senso de dever e virtude aos jovens corações”. Nos últimos três anos do ginásio, Karl também teve aulas de história com Wyttenbach. O tipo específico de humanismo expresso na redação de Marx no exame final em alemão era, provavelmente, resultado da grande influência do professor.

Quando o jovem Karl entrou no ginásio, em 1830, Wyttenbach já tinha 63 anos de idade. A maioria dos professores era consideravelmente mais jovem, e, como é possível deduzir das informações fragmentárias contidas nos arquivos preservados, ao menos alguns tinham opiniões bastante críticas em relação às condições sociais e políticas da época, tendo sido observados, consequentemente, com desconfiança pelas autoridades prussianas. (p. 116-7)

Falando em “condições sociais e poíticas da época”, outro professor no Colégio de Trier aparentemente influenciou bastante Marx:

Vale mencionar, sobretudo, Thomas Simon (1794-1869), que deu aulas de francês à Karl na Tertia [9º ano]. Por muito tempo, ele trabalhou na assistência aos pobres e teve oportunidade suficiente, segundo suas próprias palavras, “de conhecer o estado calamitoso da vida social em sua real forma, que tantas vezes é de apertar o coração”. Ele teria passado a se “dedicar à questão do povo pobre e negligenciado” por ter visto diariamente, como professor, “que não era a posse do dinheiro frio e sujo que dava humanidade ao ser humano, mas, sim, caráter, opinião, razão e compaixão em relação à prosperidade e às dores do próximo”. Em 1849. Thomas Simon foi eleito à Câmara dos Representantes da Prússia, onde se juntou ao grupo de esquerda.

Imagine o que seria de uma escola na qual o professor de história e de geografia, por exemplo, pudessem explorar as razões da miséria humana? Dê um tema de redação para o aluno do primeiro ano do Ensino Médio: “Por que existem os pobres?”. Em escolas públicas, o que saltaria aos olhos seria uma realidade praticamente nua e crua. Se incitados a pensar sobre a sua própria condição, quão longe no raciocínio conseguiria chegar um aluno de uma escola periférica? Uma escola que, diga-se de passagem, só continua aberta a despeito de seus resultados de avaliação do governo porque é preciso de números no final do ano e para campanhas eleitorais. “Índice de abstinência escolar? Estamos com os melhores resultados do país!”, clamaria um político que sabe o que está colhendo com seu discurso e sua estratégia de desconstrução de uma educação de qualidade.

A ideologia, embora sempre condenada, faz pensar e, além disso, refletir. Isso, como é possível ver na biografia feita por Heinrich, Marx teve e, aparentemente, com qualidade ímpar ao longo de sua formação. Trazer um ideal de humanidade estava no desenvolvimento do “caráter, opinião, razão e compaixão em relação à prosperidade e às dores do próximo”. Elementos que, se fossem obrigatórios para se viver em sociedade, estaríamos em um sistema econômico muito diferente. Sem dúvida alguma diferente do capitalismo tão criticado por Marx e pode até ser que em um sistema também muito diferente daquele pensado por Marx no século XIX. Quase uma utopia, não é?

8) Hegel na Universidade de Berlim

Saindo do ginásio, rumo aos anos de faculdade de Marx, é preciso fazer uma pausa para outra pessoa muito importante em sua formação intelectual: Hegel. Este é um ponto controverso entre estudiosos dos dois autores, em especial porque “a análise da relação Marx-Hegel depende do modo de interpretar a filosofia hegeliana” (Heinrich, p. 185). Isso se justifica tanto pela importância que esse filósofo teve já naquela época (século XIX) quanto também pelo fato de Hegel ser professor da Universidade de Berlim durante boa parte de sua vida. Vale ressaltar, como o autor da biografia apresenta, que até o começo do século XIX, Berlim, naquela época capital da Prússia, não tinha uma universidade.

Em 1806 a Prússia foi derrotada pela França. O ônus dessa derrota foi o fechamento da universidade local, em Halle. Após essa derrota, fundou-se, em 1809, a Universidade de Berlim, que começou suas atividades em 1810. O nome atual da universidade, alterado após a Segunda Guerra Mundial, é Humboldt-Universität, em homenagem aos irmãos Humboldt, fundadores da instituição.

“Os fundadores não queriam que a universidade se tornasse somente um centro científico, queiram que promovesse também uma renovação intelectual”. Seguindo esse objetivo, em 1811, Johann Gottlieb Fichte, filósofo e um dos criadores do idealismo alemão, que seguia os ideais de Kant, foi eleito o primeiro reitor.

Um figura tão central quanto Hegel foi Karl vom Stein zum Altenstein (1770-1840). Ele foi primeiro ministro da Cultura da Prússia (entre 1817 até sua morte). Durante seu tempo à frente do cargo, Altenstein reformou o sistema educacional prussiano expandindo a escolaridade obrigatória para todo o território da Prússia, em 1825; e introduziu um currículo unificado para os ginásios, em 1834.

Um importante acontecimento, tanto para a história inicial da universidade quanto para a vida intelectual de Berlim, foi a convocação de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) para ocupar a cátedra de Fichte, que morrera em 1814. Um dos primeiros atos oficiais de Altenstein foi convidar Hegel, em dezembro de 1817 – com uma oferta bastante vantajosa em termos financeiros -, a transferir-se para a Universidade de Berlim. Hegel aceitou e lecionou em Berlim de 1818 até morrer [como vítima de epidemia de cólera em Berlim; ou seja, lecionou na universidade durante 13 anos].

Esse empenho inicial de Altenstein em relação a Hegel, logo após se tornar ministro, não se devia simplesmente ao fato de que Hegel se tornara um importante filósofo – principalmente por causa de suas publicações, na época, mais recentes: em 1812-1813 e 1816, Ciência da lógica; em 1817, Enciclopédia das ciências filosóficas. Altenstein também considerava, por um lado, a filosofia uma espécie de ciência-guia no processo de reforma; por outro, via em Hegel um pensador com ideias politicamente liberais, sem, contudo, ser provocativo em demasia ou mesmo republicano. Nesse sentido, Hegel era uma excelente opção para os reformadores prussianos do grupo de Humboldt e Altenstein. No dia 1º de maio de 1818 Goethe escreveu acerca da convocação – ele conhecia Hegel desde os tempos que este passara em Jena -, em uma carta ao famoso colecionador de arte Sulpiz Boisserée (1783-1854): “Parece que o ministro Altenstein quer adquirir uma guarda real científica para si”.

[…] Ele [Hegel] tentava penetrar filosoficamente cada vez mais áreas do conhecimento. Sua intenção não era impor a essas áreas certos princípios, por assim dizer, “de fora”, mas, antes, revelar os princípios formadores e estruturantes nas próprias coisas. A penetração filosófica aspirada por Hegel pressupunha um vasto conhecimento especializado das respectivas áreas, independentemente  de se tratar de política ou estética; assim, sua reflexão filosófica continha uma grande quantidade de conhecimento da realidade. […] De maneira consciente, Hegel situa sua filosofia no meio de um processo de desenvolvimento histórico. A pretensão que sua filosofia tinha de chegar a um entendimento tanto universal quanto conclusivo fascinava seus contemporâneos.

9) Savigny e a Escola Histórica do Direito

Os debates sobre Filosofia do direito de Hegel influenciaram o curso de direito frequentado pelo jovem Karl em Berlim, mesmo que, de início, ele não estivesse consciente disso. Na faculdade de ciências jurídicas da Universidade de Berlim, havia uma irreconciliável oposição – tanto em termos teóricos quanto em termos pessoais – entre Friedrich Carl von Savigny, o mais importante representante da escola histórica do direito, e Eduard Gans, o mais importante hegeliano.

Aqui a curiosidade está um tanto quanto afastada das obras e da vida pragmática de Marx. Apesar disso, é interessante ver quais foram os estudos de Marx durante a universidade, em especial porque ele tem trabalhos focados em assuntos jurídicos no começo de sua carreira, como, claro, em “Crítica da filosofia do direito de Hegel” (Boitempo, 2010) e até em “Os despossuídos” (Boitempo, 2017). Dos dois professores que escolhi falar sobre, o primeiro é Savigny, considerado o criador da Escola Histórica do Direito – um nome que é recorrente em aulas sobre História do Direito, até hoje.

Savigny lecionava na Universidade de Berlim desde que ela fora fundada [1810]. Ele tinha a confiança do rei da Prússia e era o professor de direito do príncipe herdeiro. Mais ainda que Gustav von Hugo, Savigny fora o verdadeiro fundador da escola histórica do direito – que ganhara contorno nítido sobretudo após a “discussão acerca da codificação legal”, no ano de 1814, e a fundação da […] Revista de Ciência Jurídica Histórica em 1815.

[…] Savigny duvidava da possibilidade plena dos legisladores de criar leis efetivas. Em contrapartida, destacava  caráter histórico-tradicional do direito, que, assim como a língua na história e nos costumes de um povo – “espírito do povo” -, tem raízes e não pode ser simples e arbitrariamente moldado por legisladores. Como consequência, Savigny contesta que “nossa época” tenha a “vocação para a legislação”. Como alternativa, seria necessário primeiro encontrar as raízes históricas de cada matéria jurídica, para então classificá-las sistematicamente na totalidade do direito. […] O fato de Savigny convocar o “espírito do povo” não implica, de modo nenhum, uma tendência democrática: o próprio povo não tinha a capacidade de reconhecer o espírito jurídico popular, somente os juristas instruídos.

Por ter sido o direito romano tão importante para Savigny [ele defendia que esse direito continuava em vigência na Alemanha por toda a idade média e que não dependia de escritos porque estava no presente no espírito do povo], também o Digesto [ou Pandectas] – compilação de princípios jurídicos retirados das obras de diversos juristas romanos e ordenados por tema, organizada a pedido do imperador Justiniano I (482-565) – desempenhava para ele papel central. Ele regularmente oferecia um curso sobre Digesto, que era bastante famoso e foi frequentado também por Karl Marx. (p. 192-193)

10) Gans e a crítica ao socialismo utópico de Saint-Simon

Outro professor de Marx foi Eduard Gans. Opositor de Savigny, Gans era judeu e precisou se converter ao cristianismo para conseguir uma vaga na Universidade de Berlim para lecionar. Em 1825 ele se deixa batizar e começa suas aulas na universidade com a “benção” do ministro Altenstein. Um ponto curioso sobre as informações de Gans é sua crítica à “utopia social de Saint-Simon” e a visão de classes embasada nas experiências que Gans na França e na Inglaterra. Um percurso intelectual que Marx e Engels percorreriam anos depois tanto para o escrito d’O Capital como também, no caso específico de Engels, d’A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.

Filosofia do direito de Hegel contrasta nitidamente com as ideias da escola histórica do direito. […] Hegel a acusa de ter confundido os processos de compreensão e explicação do direito com a história de seu surgimento. Savigny não chega a ser explicitamente mencionado por Hegel, mas no parágrafo 211 este escreve, referindo-se à posição daquele sobre a questão da codificação: “Negar que uma nação culta ou que sua classe jurista seja capaz de estabelecer um código civil” é “um dos maiores insultos” que se pode fazer a essa nação ou a essa classe.

Porém, não foi o próprio Hegel quem carregou o principal fardo do debate com Savigny, mas seu “aluno” Eduard Gans. O difundido epíteto “aluno” não é tão adequado, já que Gans nunca frequentou os cursos de Hegel. Ele provinha de uma família judaica outrora rica de Berlim que perdera grande parte de seu patrimônio durante as turbulências da ocupação francesa.

[…] Gans passou a se concentrar na elaboração de sua principal obra na área jurídica, O direito das sucessões no desenvolvimento histórico mundial, em que ele começa a traçar uma história do direito universal sobre o direito das sucessões, partindo de Filosofia do direito de Hegel. A estrutura dessa obra por si só representa uma crítica implícita à escola histórica do direito, que sempre analisou a história do ponto de vista de um ou de alguns poucos povos. Gans, por sua vez, destaca já no prefácio do primeiro volume (1824) que a história do direito tinha de ser, necessariamente, a história universal do direito, já que nenhum povo e nenhuma época tinham importância exclusiva.

[…] Em 1819, Gans foi cofundador da Associação de Cultura e Ciência dos Judeus, sendo presidente desta de 1821 a 1824. Após os acontecimentos na Universidade de Berlim [que bloquearam seu acesso à cátedra por conta de sua religião], ele já não tinha mais esperanças de participar, enquanto judeu, no desenvolvimento do Estado prussiano. Em dezembro de 1825, ele se deixa batizar. Poderia, dessa forma, oficialmente ocupar uma cátedra; ainda assim, a resistência por parte da faculdade teria impedido sua habilitação. Contudo, já em março de 1826, Altenstein – que via em Gans um aliado contra o conservadorismo – deu-lhe um cargo de professor adjunto, mesmo sem habilitação, o que era possível sem o consentimento da faculdade. No fim de 1828, ele conseguiu que o rei nomeasse Gans professor titular. (p. 195-7)

Uma pausa para uma observação: aqui a “questão judaica” se faz presente mais uma vez. Dado todo o contexto dos judeus até o século XIX, histórias como as do pai de Marx e de Eduard Guns parecem ser mais “naturais” que o normal: sem a conversão para o cristianismo, esses profissionais não teriam conseguido se emancipar de uma condição que não era voluntária, mas sim, imposta pelos costumes e legislação vigente.

Destaco esses pontos porque eles mostram o quão incoerente é afirmar que Marx era antissemita: ele tinha a influência do pai; uma educação neo-humanista; e um professor também convertido por conta das condições da época. Era de se esperar que, se Marx não tivesse sido batizado, seu caminho seria parecido – isso é uma conjectura, porém, uso ela para ressaltar que não eram os judeus que tinham o potencial de impor barreiras indiretas na vida de Marx, mas sim os legisladores e cristãos – talvez seja este fato um dos ingredientes para a aversão de Marx à religião? Fica o questionamento. Vamos voltar às informações de Guns:

Já no ano 1827, Gans havia assumido o curso de filosofia da história de Hegel. Ele o complementava com temas jurídicos específicos, adicionava, no começo do curso, uma introdução sobre a história da filosofia e fazia um esboço, no fim, de uma história universal do direito, confrontando, assim, a escola histórica do direito, também dentro da docência, no plano histórico. (p. 197)

Um livro sobre “a história dos últimos cinquenta anos”, que já havia sido anunciado pela editora, não pôde ser publicado devido à morte precoce de Gans; o manuscrito não foi preservado. Entretanto, outro livrofoi publicado no verão de 1836, pouco antes de Marx chegar a Berlim: Rückblicke auf Personen und Zustände [Análises retrospectivas de pessoas e situações]. Gans analisa aqui, entre outras coisas, o saint-simonismo que havia conhecido em duas estadas em Paris, nos anos 1825 e 1830. Graças a sua familiaridade com a análise hegeliana da sociedade burguesa em Filosofia do direito e a seu próprio conhecimento sobre as relações industriais inglesas – adquirido em uma longa viagem pela Inglaterra, em 1831 -, Gans não só conseguiu fazer uma crítica à utopia social autoritária de Saint-Simon mas também chegou a uma notável compreensão – que vai muito além de Hegel – da história e da situação das relações de classe de então:

Eles [os saint-simonistas, M. H.] perceberam acertadamente que a escravidão ainda não acabou, que ela até foi revogada de maneira formal, mas que em termos materiais ainda está em perfeita forma. Assim como, antes, se opunham o senhor e o escravo, depois o patrício e o plebeu, então o senhor feudal e o vassalo, hoje se opõem o ocioso e o trabalhador. Ao se visitarem as fábricas da Inglaterra, encontram-se homens e mulheres, magros e miseráveis, servindo a uma única pessoa, sacrificando a saúde, os prazeres da vida, meramente por uma pobre subsistência. Não é isto escravidão, quando seres humanos são explorados como animais, quando, mesmo que fossem livres, acabariam morrendo de fome? [Eduard Gans, Rückblicke auf Personen und Zustände (1836) (Stuttgard, Frommann-Hozboog, 1995), p. 99-100.]

Cornu [outro biógrafo de Marx] já indicava a possível influência dessa ideias sobre Marx, e Brain destacou a semelhança entre a segunda frase dessa citação e a parte inicial do Manifesto Comunista (“Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e serva, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição” [p. 40 da edição da Boitempo de 2010]. Não sabemos se Marx leu o livro de Gans. contudo, considerando que ele havia frequentado seus cursos, que Gans estava no centro da atenção pública e que Marx era um leitor assíduo, é bem possível que conhecesse o livro. Marx ainda não tinha, no fim da década de 1830, as noções de economia necessárias para compreender toda a dimensão das ideias de Gans. ainda assim, a ideia de que a a sociedade burguesa, no que diz respeito à exploração dos trabalhadores, não se diferenciava tanto das sociedades pré-burguesas quando em geral era pressuposto pelos liberais, provavelmente, suscitou muitos pensamentos em Marx. (p. 200-1)

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