O calor infernal das tardes de São Paulo abrira espaço para os ventos quase gelados de setembro. Final de noite, quase começo da madrugada de um novo dia. Em casa apenas o autor deste artigo e suas duas gatas, Raja e Manila. Silêncio. Nem carros, nem motos, nem pedestres ousavam perturbar a calma e a ansiedade do ambiente. As gatas não haviam percebido nada ainda, mas sobre a mesa estavam os instrumentos para a redação deste trabalho: compasso, um copo americano e o tabuleiro de Ouija. Era preciso estabelecer um contato com o sobrenatural para confirmar detalhes da obra de Henry James. Estava prestes a dar mais uma volta no parafuso. Como a governanta, apertara a virtude humana. Mentira. Ele, o autor, na verdade apertara a apreensão, o receio, o temor, o medo. Uma escala de símbolos e de seus valores que, apenas naquele momento, percebera o sentido das aula de Linguística do primeiro semestre e as sutilezas entre os sentimentos quase sinonímicos.
O primeiro teste de comunicação foi feito com o compasso. Crente da existência de Quint e da srta. Jessel e na confiabilidade da governanta, os primeiros invocados seriam os fantasmas da obra “A outra volta do parafuso”. Caso houvesse velas pretas disponíveis, elas estariam acesas. Cinco velas, para ser mais preciso, formando um pentagrama desenhado com sal. A falta dos instrumentos o forçou a improvisar. “Vai sem vela, sem sal e sem cristal mesmo!”, pensou. Em uma folha de sulfite escrevera o abecedário e dez numerais, todos em ordem horária formando um círculo. Não fora difícil relembrar a brincadeira que fazia nos anos do Ensino Fundamental. Não rezou; mas rezava com os amigos quando criança. Apenas posicionou a agulha do compasso no centro do círculo, segurou de leve a extremidade superior e aguardou o contato. O compasso mal se mexeu. Em um determinado momento mostrou a intenção de sair da letra A, mas logo voltou atrás e ficou parado. “Cinco minutos”, foi o tempo que determinou para o primeiro teste. Nada.
O próximo foi o copo. Aproveitou a mesma folha de papel que usara com o compasso; posicionou o copo de cabeça para baixo e esperou. “Cinco minutos”, determinou mais uma vez. Diferente do compasso, este sequer se mexeu. “Espíritos Jamesianos, Quint e srta. Jessel; governanta ou Miles; Douglas ou qualquer um que estiver ouvindo, manifeste-se!”, disse em voz alta. Silêncio. A única perturbação no cenário foi a gata Manila que levantou a cabeça. “Papai está louco de vez, Raja!”, pensou a felina. Raja sequer mexeu a orelha. Manila voltou a dormir. No final do tempo determinado foi a vez do tabuleiro de Ouija. Como esperado pelo leitor, também sem sucesso.
Como fora proposto, o autor lera o livro. Porém, diferente do planejamento ideial, apenas completara a leitura dias antes da primeira data de entrega do trabalho. Quando sentou-se pela primeira vez para apreciar a leitura, percebera, apenas pela introdução, que aquela não seria uma leitura convencional. Já sabia que a confiabilidade da governanta estava em questão: Confiar ou não confiar, eis a questão. Confiar em quem? Por que era preciso dar um voto de confiança à narradora da história? Tão logo começou a leitura, tão logo parou. “Precisarei de tempo para analisar melhor, nem vou começar o primeiro capítulo”, determinou, fechou o livro que ficou aguardando ser lido na semana da independência. Ficou na mesa por longos cinco dias. “Vou primeiro ler os textos teóricos e então partirei para a obra”. Assim fez. Porém, com sua mania repreensível de deixar tudo para o último segundo, o autor apenas pegara o livro para continuar a leitura no domingo, dois dias antes da data agendada pela professora para o debate da obra. Leu durante a tarde de forma lenta e com uma atenção redobrada. Precisou interromper para cuidar da casa e apenas voltou a lê-lo de madrugada.
Ao final da leitura a questão da confiança não era mais central. Ela foi sobreposta por outras mais intrigante: “E aí, Quint e a srta. Jessel existiam ou não?”; “Por que Miles morreu nos braços da governanta?”; “Qual foi o papel da sra. Groose no enredo?”; “Tinha alguém realmente vivo além da governanta na casa ou até ela estava morta e aqui era um purgatório para uma alma supostamente pura e platonicamente apaixonada pelo tio das crianças?”. Almejava por respostas e, para tanto, resolveu ficar alguns minutos refletindo; relendo; analisando. Chegara a uma resposta? Não. Mas precisava fazer o trabalho, era imprescindível para a nota final. “Ok, vamos pensar melhor”. Aqui estão os pensamentos do autor. Antecipo: ele acreditou nos fantasmas e confiou na narrativa da governanta, algo muito estranho para uma mente maliciosa e escorpiana que tende a desconfiar de tudo e de todos e, além disso, enxergar intenções sexuais onde sequer há falas ou gestos.
Logo de cara o leitor é apresentado a um ambiente de mistério. Um narrador testemunha que não se identifica descreve uma reunião de algumas senhoras e senhores que contam historinhas de terror. Sim, historinhas no diminutivo, pois assim seriam, até Douglas, um dos senhores da roda, advertir que a história que ele contaria era “horrível demais” e que nunca havia sido ouvida por ninguém além dele. Suspense. Apreensão. A introdução cumpre seu papel: introduz o leitor no mesmo cenário daquela roda de conhecidos. Nos faz dar a primeira volta no parafuso da apreensão e, principalmente, da atenção. Se o personagem advertiu que era uma história horrível, o que o leitor pode aguardar além de uma história horrível?
Este ambiente inicial parece ser crucial para o voto de confiança atribuído à narradora, ou seja, à governanta. Pode-se, logo de cara, desconfiar de sua índole e supor que ela era, na verdade, uma pedófila que abusava de seus protegidos. Suposição. Apenas uma suposição para um leitor atento e que ficou marcado por esta informação. Confesso que não fiquei marcado por essa informação. Ela passou desapercebida. Talvez essa volta do tal parafuso tenha sido perdida. Caso não fosse a interpretação da história mudaria.
A nossa interpretação dos seres vivos é mais fluida, variando de acordo com o tempo ou as condições da conduta. No romance, podemos variar relativamente a nossa interpretação da personagem; mas o escritor lhe deu, desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva da sua existência e a natureza do seu modo-de-ser. (CANDIDO et al, 1972, p. 59)[1]
Apesar da tendência de olhar para a complexidade do ser humano, compará-la relativamente à da personagem e desconfiar de seu caráter, é possível, como já fora expresso, negar a desconfiança e acreditar na narrativa. A governanta, logo em suas primeiras palavras se mostra suscetível e deslumbrada com o que contará ao leitor. Por um lado confesso sua “[…] terrível suscetibilidade a impressões” (p. 48), por outro, se admira com a comodidade de sua recepção e as boas-vindas incomuns para alguém de sua classe social. “Creio que eu previra, ou temera, me ver diante de algo de tal modo melancólico que o que de fato encontrei proporcionou-me uma surpresa boa” (p. 17)[2], nos confessa ela.
Aliás, confissões são a marca central de sua narrativa. De forma transparente – pelo menos do ponto de vista de um leitor que confiou em suas palavras –, a governanta coloca no papel suas impressões, seus “voos e quedas”, as “gangorras de palpitações boas e más”; oscilações que nenhum ser vivo consegue escapar, mesmo que tente. É esta sinceridade da governanta que conquista, logo no começo, a confiança do leitor disposto a compartilhar os altos e baixos de uma mulher nova, responsável, de origem pobre e comprometida com a educação de seus protegidos.
Havia na cena uma grandeza que a tornava algo bem diverso do meu pobre lar, e imediatamente surgiu à porta, de mãos dadas com uma menininha, uma pessoa cortês que me fez uma mesura tão reverente quanto se eu fosse a dona da casa ou uma visitante de distinção. Na Harley Street a casa me fora descrita em termos mais modestos, e esse fato, quando o relembrei, fez-me ter o proprietário em mais alta conta do que antes, levando-me a pensar que eu viria a desfrutar algo mais que o prometido. (p. 18)
O quarto, espaçoso e imponente, um dos melhores da casa, a enorme cama de baldaquino, quase digna de um rei, as abundantes colgaduras estampadas, os espelhos compridos nos quais, pela primeira vez, pude me ver da cabeça aos pés, todas essas coisas pareciam – tal como o encanto extraordinário de minha pupila – vantagens adicionais. (ibid., grifos nossos)
A questão dos altos e baixos da vida se intensifica quando lemos sobre sua origem pobre (como destacado nas citações acima). Filha de um pároco e de origem humilde, a governanta sequer havia apreciado seu reflexo em um grande espelho. Estas pequenas informações mostram o quanto ela estava impressionada com aquela realidade que até hoje é acessível apenas a uma parcela ínfima da população. Construir esse paralelo entre a obra de James e nosso mundo atual também pode ser uma pista do porque é possível confiar na narradora. Afinal, por que desconfiar de alguém que é tão transparente a ponto de relatar suas origens e seus temores? Afinal, mais uma vez, por que desconfiar de uma mulher com clareza sobre a posição de seu gênero? Esse segundo “afinal” é claro na passagem na qual a governanta conversa com a sra. Grose e juntas levantam a hipótese de entrar em contato com o tio de seus protegidos e dono daquela mansão onde estava:
[…] olhando para mim, ela claramente não era capaz. Em vez disso, até mesmo ela – como uma mulher que compreende outra mulher – conseguia ver o que eu própria estava vendo: o deboche, o riso, o desprezo que ele manifestaria por eu não suportar ser deixada a sós, e pelo delicado mecanismo que eu pusera em movimento a fim de atrair sua atenção para meus encantos desprezados. (p. 91, grifos nossos)
Classe e gênero, assuntos caros em nossa sociedade, são levantados em poucas passagens da obra de Henry James. Apesar de serem passagens sutis, elas têm força na defesa da confiabilidade da narradora. Supostamente apaixonada pelo tio das crianças e dono da mansão, a governanta não poderia ter o luxo de se rebaixar e quebrar o acordo feito com ele na Harley Street. Ademais, seu senso de responsabilidade, sua coragem e seu caráter extraordinário para com a educação das crianças haviam de ser recompensados, ao menos ela almejava essa recompensa, por meio da concretização desse “amor platônico” de quem vira o apaixonado apenas duas vezes na vida:
Era um prazer, nesses momentos, sentir-me tranquila e justificada; sem dúvida, talvez, refletir também que graças à minha discrição, meu sóbrio juízo e meu severo senso geral de decoro, eu estava dando prazer – se é que ele pensava nisso! – àquele a cuja pressão eu cedera. […] Em suma, eu me via, confesso, como uma jovem extraordinária, e confortava-me a confiança de que esse fato haveria de se manifestar de modo mais público. Pois bem, eu precisava mesmo ser extraordinária para enfrentar as coisas extraordinárias que em pouco tempo começaram a dar os primeiros sinais. (p. 31, grifos nossos)
É possível desconfiar de alguém que diz ter um juízo sóbrio e um “severo senso geral de decoro”? Sim. Desconfiar de: (1) uma mulher (2) de origem pobre (3) que cativa o leitor com seus deslumbramentos? Também é uma opção do leitor. Palavras manipulam, para o bem ou para o mal. Escolhemos, aqui, confiar. Afinal, sua percepção do mundo que a rodeia parece ser clara e, ao mesmo tempo, mutante. Ela já se confessara ser suscetível e, além disso, deu carta branca ao leitor para questionar a verossimilhança de sua narrativa dado o estado mental testado pelas provações que aquele cargo propunha (p. 53). Contudo, seu estilo de escrita e sua sinceridade mostram o quão fiel são seus relatos. Aqueles voos e quedas são retratados de maneira justa quando a narradora apresenta sua visão quanto à casa e os ambientes que a rodeiam. Se em sua recepção tudo era maravilhoso, à medida em que seu espírito e sua coragem são testados, o ambiente escurece, se torna mais sombrio e menos detalhado. Após os fantasmas entrarem no enredo e o outono mostrar suas caras, o colorido de Bly perde espaço para um “céu cinzento e grinaldas murchas […] espaços esvaziados e folhas secas espalhadas […] como um teatro após o espetáculo” (p. 95) no qual restara apenas ela para contemplar a decadência do cenário frente aos testes que eram impostos à sua frágil suscetibilidade. O medo tenta se instalar, mas não sobrepõe seu instinto protetor, praticamente maternal.
Para ser justo com as demais mulheres da cena, naquele teatro vazio estavam a governante e a sra. Grose que, para além de subordinada, se tornara amiga e confidente. Ela se tornara um porto (quase) seguro para o qual a narradora poderia velejar quando necessitava esclarecer seus pensamentos e preocupações quanto à integridade das crianças e o dever que assumira com o tio dos pequenos. Embora tenha se mostrado resistente a apoiar a amiga na última aparição da srta. Jessel, é a sra. Grose que apoia a amiga e enxerga a influência dos fantasmas no discurso da bela e inocente Flora. Sem muitos questionamentos, a antiga administradora de Bly faz o que pode para ajudar nos planos da governanta, embora não esperasse o trágico desfecho e a vitória de Quint ao roubar a alma de Miles no confronto final do livro.
Falando em fantasmas, eles são a segunda questão do leitor: existem ou não? A resposta é influenciada pela confiabilidade atribuída à narradora. Caso desconfie da narrativa, os fantasmas serão visões de uma governanta perturbada, histérica e esquizofrênica. Caso contrário, e esta é a posição deste trabalho, os fantasmas são reais e são os impulsionadores da força e da coragem dela. A realidade dos fantasmas fica evidente em uma das conversas da governanta com a sra. Grose:
Tarde naquela noite, quando a casa já dormia, tivemos outra conversa em meu quarto; nessa ocasião a sra. Grose concordou plenamente comigo que não havia como questionar que eu vira exatamente o que vira. Para fazê-la comprometer-se por completo quanto a esse ponto, constatei, bastava perguntar-lhe como, se eu havia “inventado” a história, me fora possível apresentar, para cada uma das pessoas que me aparecera, uma imagem que revelava, até o mínimo detalhe, suas características específicas – um retrato com base no qual, ao lhe ser exibido, ela pôde reconhece-las e nomeá-las no mesmo instante. (p. 63)
As descrições de suas visões, feitas pela governanta, eram precisas: um homem belo, ruivo e não pertencente à classe social de suas roupas – era Quint, o antigo lacaio da casa. O mesmo, contudo, não acontece com a segunda aparição: o fantasma da sra. Jessel. A governanta supusera que a mulher que vira do outro lado do lago era sua predecessora, afinal, não conseguira visualizar sua aparência. A postura da narradora neste momento parece fugir daquela apresentada até então: ela supõe ser a antiga governanta; tem certeza disso; diz que Flora também a viu, mas impede que a sra. Grose confirme tal informação com a criança. Uma ambiguidade latente que quase coloca em cheque a confiança atribuída à narradora. “Quase” porque o leitor tem a opção de se apegar ao desespero da mesma: “Quanto mais repiso, mais vejo, e quanto mais vejo, mais tenho medo. Não sei mais o que eu não vejo – que medo eu não tenho!” (p. 58). Lembrando Candido, as personagens de romance, principalmente aquelas personagens de natureza (de Johnson) ou esféricas (de Forster), são tão complexas quanto os seres vivos. Na caracterização de Forster (apud CANDIDO et al, 1972), esse tipo de personagem têm características que “[…] se reduzem essencialmente ao fato de terem três, e não duas dimensões; de serem, portanto, organizadas com maior complexidade e, em consequência, capazes de nos surpreender” (p. 63). A surpresa aqui é a incoerência. Como a governanta ter tal postura? Como pôde ela, em seu relato fiel e sua postura forte, assumir tal pressuposição e levar a informação adiante de forma tão enfática? Como dito: o medo, o incomum, o sobrenatural. Nas palavras dela:
Eu só podia seguir em frente tomando a “natureza” como minha confidente e levando-a em conta, tratando minha monstruosa provação como um esforço numa direção estranha, é claro, e desagradável, mas algo que exigia, afinal, para manter uma fachada serena, apenas outra volta no parafuso da virtude humana comum. (p.145)
A ambiguidade decepcionou? Sim. Contudo, mais decepcionante que isso foi o fato de nem o compasso, nem o copo e muito menos o tabuleiro de Ouija ter respondido a única questão que tinha a ser feita: “Era mesmo a srta. Jessel ali?”. Afinal, essa foi a única questão que ficou em suspenso a todo o momento para o leitor que confiou na governanta. Foi esse seu único defeito: se entregar, por um segundo, ao medo e supor algo com tanta convicção para levar a impressão até o final do livro. Porém, vale lembrar que “A força das grandes personagens vem do fato de que o sentimento que temos da sua complexidade é máximo; mas isso, devido à unidade, à simplificação estrutural que o romancista lhe deu” (CANDIDO et al, 1972, p. 59). A complexidade da governanta de Henry James é a complexidade do ser vivo: quem, afinal, não se entregaria ao medo de uma aparição? Quem não confiaria no instinto maternal e protetor para dar nome ao indescritível e ter algo mais concreto contra quem brigar? Embora a srta. Jessel seja uma suposição, a fantasma estava ali, era uma ameaça e precisava ser combatida com as informações disponíveis até então. Sendo assim, a ambiguidade é perdoada, embora a luta da governanta tenha sido perdida.
[1] CANDIDO, Antonio. Et al. A personagem do romance. In: ______. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiuva, 1972. Pp. 53-80.
[2] As citações da narrativa são referentes à obra: JAMES, Henry. A outra volta do parafuso. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
Resenha apresentada na disciplina Introdução aos Estudos Literários 2, ministrado pela professora Viviane Bosi, do curso de Letras (USP).